Tem constituído objecto de importantes trabalhos de estudo e investigação, mas também de controvérsia, a problemática da adopção do crioulo, ou uma das variantes do crioulo cabo-verdiano, como língua oficial de Cabo Verde a sua consequente utilização nas escolas e em todas as instituições e repartições burocrático-administrativas cabo-verdianas. Ainda que todos pareçam estar de acordo quanto à necessidade de preservar, estudar, desenvolver e valorizar a língua cabo-verdiana, nem todos tem a mesma opinião quanto à necessidade ou mesmo viabilidade da sua instituição como língua oficial de Cabo Verde. Se há quem entenda que a insistência na utilização da língua portuguesa no pais, independente desde 1975, equivale a uma recusa por parte dos que assim procedem em se libertarem definitivamente de uma mentalidade de colonizado, há por outro lado quem considere a língua portuguesa uma herança positiva da colonização, não só por razões de ordem prática como instrumento de comunicação a nivel nacional, mas também pela amplitude do espaço cultural de que a língua portuguesa é parte integrante, opondo assim argumentos de carácter histórico e pragmático às fundamentações nacionalistas da substituição radical e definitiva do português pelo crioulo.
Creio que continuaremos a discutir esta questão entre nós, até chegarmos finalmente a uma conclusão objectiva e isenta dos preconceitos, da carga subjectiva e de uma certa emotividade ainda à flor da pela que muitas vezes nos desvia dos nossos propósitos iniciais. Não me parece que a valorização e o desenvolvimento do crioulo e a sua introdução no currículo normal das escolas cabo-verdianas, com a padronização de uma das variantes, instrumentada em termos de alfabeto, gramática e dicionário e eventualmente a sua oficialização, tenha necessariamente que implicar a exclusão da língua portuguesa, cujo lugar e cujas funções dentro do quadro de comunicação linguística em Cabo Verde me parecem definir-se de forma cada vez mais clara. Concordo com a tese de Dulce Almada Duarte * quando afirma que o futuro linguístico de Cabo Verde e bilingue, em crioulo e português, em que a utilização das duas línguas processa em regime de reconhecimento mútuo e de acordo com as circunstâncias, não parecendo provável a substituição de uma pela outra, pelo menos a curto ou mesmo médio prazo, já que não temos a capacidade de prever o futuro em termos absolutos, mas tão somente de observar e especular a partir de dados e tendências que nos permitem alvitrar hipóteses e imaginar os possíveis cenários que se oferecerão as nossa opções linguísticas futuras.
Há sempre uma margem de espontaneidade na evolução das línguas e do seu papel numa comunidade ou numa sociedade, cujos efeitos a longo termo são imprevisíveis, para além de e sejam quais forem as decisões politicas tomadas nesse âmbito. Muito se tem feito em Cabo Verde depois da independência para prestigiar, dignificar e desenvolver a língua cabo-verdiana, e nesse sentido é notável o trabalho perseverante e abnegado de estudiosos e especialistas nesta área de investigação, como Artur Vieira, kauberdiano Dambará, Dulce Duarte, Luís Romano, Manuel Veiga, Kaká Brabosa, Francisco Fragoso, Manuel Gonçalves, e Tomé Varela, Dany Spínola, Luis Hoppfer Almada, Inês Brito,não só no plano de investigação teórica, como na instrumentalização da língua cabo-verdiana no sentido da sua padronização, como na sua utilização como língua literária.
Ao fim e ao cabo escritores como Artur Vieira, Luís Romano,Gabriel Mariano, Corsino Fortes, Manuel Veiga e Tomé Varela, Zizin Figueira, para não falar nos poetas-compositores como B.Léza, Manuel Novas, Jota Monte, e tantos outros que passam como anónimos ou que ninguem se lembra de os citar, ao utilizarem a língua cabo-verdiana – o primeiro na variante da Ilha Brava, o segundo na de Santo Antão e os os dois últimos na santiaguense – prosseguem na linha de Eugénio Tavares e Pedro Cardoso, os dois grandes percursores da valorização do crioulo e a quem Cabo Verde deve das mais belas paginas da sua literatura. Não cabe no âmbito deste artigo falar de forma mais exaustiva sobre a valiosa contribuição trazida neste domínio por investigadores como Baltazar Lopes da Silva, como o estudo “O Dialecto Crioulo de Cabo Verde”, uma referência fundamental e um marco decisivo na historia da língua cabo-verdiana , ou a contribuição de Kauberdiano Dambara, Luís Fragoso, Kaká Barbosa e outros no mesmo sentido, mas tão somente sublinhar a sua importância numa longa luta de afirmação da identidade cultural e dignificação da cultura e do homem cabo-verdiano ao longo da sua história. Essa preocupação não me parece excessiva, sobretudo quando se têm presentes as duvidas que muitos imigrantes cabo-verdianos jovens, de segunda geração, revelam quanto ``a identificação com as suas origens e algumas manifestações de depreciação ou mesmo rejeição muitas vezes verificadas entre eles, quando confrontam a cultura dos seus progenitores com a da sociedade em que se inserem ou se integram ou tentam inserir-se ou integrar-se. Um fenómeno complexo, de efeitos imprevisíveis por vezes e que tem certamente muito a ver com os problemas de inserção e de integração social com que diariamente lida a sociedade do pais de acolhimento. E’ nessa dualidade cultural que vivem os imigrantes de segunda geração e os conflitos que gera nem sempre são resolvidos ou abordados da melhor forma pelos seus sujeitos e pelos que tentam, muitas vezes por dever de oficio , solucioná-los.
Voltando a questão linguística, que não podemos naturalmente dissociar da questão social, as escolas portuguesas situadas em bairros de forte incidência populacional cabo-verdiana, defrontam-se forçosamente com a situação de bilinguismo entre os seus alunos de origem cabo-verdiana que coloca os professores que nelas ensinam perante a necessidade de desenvolver estratégias e eventualmente adoptar uma metodologia diferente no ensino da língua portuguesa a estes alunos, que no seu ambiente familiar e no meio onde habitualmente vivem falam o crioulo e não o português. Naturalmente o grau de domínio da língua portuguesa, a sua língua de comunicação oral e escrita com os professores afectará o progresso escolar desses alunos nas outras disciplinas , pois é a língua que veicula todo processo de ensino-aprendizagem das diferentes matérias que constituem o seu currículo escolar. Há situações em que as dificuldades sentidas pelos alunos são transitórias, pois a imersão na língua portuguesa pelo convívio leva-os rapidamente a dominar esta língua, mesmo que continue a falar o crioulo em casa ou com os seus pares da mesma origem. Estas são as situações que coincidem com uma inserção social bem sucedida dos filhos de imigrantes cabo-verdianos. Há porem casos em que essa inserção não se faz e os imigrantes são arrastados pelas circunstâncias para um processo de guetização e isolamento e ao desenvolvimento de uma cultura de gueto que, preservando embora hábitos e costumes do pais de origem nos imigrantes de primeira geração, vai desenvolvendo paralelamente uma nova forma de estar que se afasta do estilo de vida dos pais e avós, mas tão pouco se integra na sociedade envolvente. E’ nessa zona que se geram grupos e comportamentos em conflito tanto com a restante sociedade, como com o seu próprio meio que frequentemente resvalam para a marginalidade legal.
As escolas só por si não conseguirão superar esses problemas se a questão da inserção social dos alunos filhos de imigrantes não se resolver fora da escola., portanto na comunidade, na família, na sociedade. Todos sabemos que as escolas reflectem como espelhos os conflitos das comunidades e da sociedade em que se inserem. Mas o que se passa nelas é fundamental para que se realize uma integração harmoniosa e eficaz dos imigrantes, e a cooperação entre a comunidade, as famílias e os professores é, naturalmente, indispensável para isso. E é importante que se tenha em conta a opinião dos pais, e de forma muito particular das mães tratando-se de pessoas oriundas de Cabo Verde, pelo peso da sua acção junto da família, evitando o erro em que muitas vezes se cai ao subestimar os pontos de vista e a experiência de pessoas que por terem fraca ou nenhuma escolaridade são classificadas como “ignorantes”. Ignorantes, é certo, de coisas que se aprendem nas escolas, mas experientes em muito mais, sobretudo naquilo que é a luta pela vida. Isto, sem demagogia nem paternalismo. Simples factos da vida. Quero com isso dizer que quando, por exemplo, uma dessas mães diz, numa reunião da Escola com os Pais e Encarregados de Educação de filhos de imigrantes, como já uma vez aconteceu, que “manda o seu filho para a escola para aprender a falar e a escrever português e não crioulo, porque crioulo já sabe, aprende-o em casa” , vale a pena ponderar muito a sério o que leva aquela senhora a insistir de forma tão enérgica nesta questão. Isto, sem desvirtuar a importância do crioulo e o interesse e a necessidade do seu estudo ou do seu ensino nas escolas. Neste caso, quanto a mim, importaria saber em que condições e a que níveis se poderá ou deverá ensinar o crioulo.
* Dulce Almada Duarte, - “Bilinguismo ou Diglossia?”. Praia, 1998
segunda-feira, 26 de junho de 2006
sexta-feira, 7 de abril de 2006
Vantagens das Desvantagens
Não faço o elogio da pobreza para eleger qualidades ou virtudes que nela se geram. É preciso perguntar a quem vive nas mais precárias condições de vida qual a sua opinião, antes de termos quaisquer veleidades na matéria. Como aquela mulher que vive lá para os lados da Chacra, ilha de Santiago, tem uma filha pequena para criar, sozinha, e se levanta cedo para sair à procura de algo que lhe dê para ganhar a refeição do dia quando regressa a casa ao fim da tarde. Juntando lenha para vender, por exemplo, ou carregando pedras para qualquer obra. Não tem nada de garantido, nada de seguro. Subsídio de desemprego, pensão de reforma um dia? Não brinquem. Isto sem lamechices: simples factos da vida, factos do dia a dia.
Posto isto, vou ao que queria dizer.
Alguém oriundo de uma outra ex-colónia portuguesa disse-me uma vez:
“A vossa sorte em Cabo Verde é terem uma terra pobre”.
A sua conclusão baseava-se no raciocínio de que em Cabo Verde, pela sua escassez crónica de recursos naturais, nunca foi possível implantar um sistema de exploração que desse lugar ao tipo de sociedade que se criou nas outras colónias. Como as roças de S.Tomé, por exemplo. Ou as grandes plantações de Angola e Moçambique. Ou minas de diamante, ou petróleo. Essas fontes de riqueza foram pólos de atracção para uma corrente migratória de colonos a quem foram dadas condições muito especiais como forma de os atrair e fixar, enquanto, para assegurar esse estatuto, mantiveram as populações autóctones à margem da sociedade que foram criando e desenvolvendo. Não só as mantiveram à margem como lhes retiraram a sua dignidade como seres humanos pela opressão social e pelo desprezo, impondo-lhes um tratamento racista e humilhante. Qualquer colono ganhava automaticamente um estatuto de classe favorecida, enquanto às populações nativas foi imposto o regime de indigenato e o respectivo estatuto a que equivalia a restrição total dos direitos mais elementares. Os cabo-verdianos, tendo embora outros problemas, disso se livraram.
No caso de São Tomé, este território seguiu até um determinado momento da sua história um percurso semelhante ao de Cabo Verde e a parte africana da sua população conheceu uma relativa tranquilidade e liberdade de acção, e mesmo um certo desafogo, e o relacionamento com os poucos colonos dava-se numa base de mútua aceitação e reconhecimento. A alteração do sistema de produção com a implantação de roças veio alterar profundamente a vida da população de São Tomé. Apenas um exíguo número de famílias são-tomenses era detentor de terras. Instituiu-se em São Tome um regime de monocultura em que se explorava a fundamentalmente a produção de cacau e, em menor escala, café. A exploração destes dois grandes recursos agrários estava nas mãos de empresas sedeadas em Portugal ou de alguns empresários individuais. Os naturais de São Tomé recusaram-se a trabalhar nas roças, pelo que as mesmas passaram a recrutar trabalhadores de outras colónias, como Angola e Moçambique, mas principalmente de Cabo Verde. O sistema de exploração e o recrutamento de mão-de-obra teve naturalmente o apoio da administração colonial. Permitia por um lado, resolver o problema de mão-de-obra para a exploração das roças e, por outro lado, era uma forma de solucionar outros problemas como o das crises cíclicas provocadas pelas secas em Cabo Verde. As condições de trabalho eram degradantes, a forma como os trabalhadores eram transportados para São Tomé eram aviltantes, mas a lógica da Administração, lógica a que os próprios trabalhadores não tinham outra alternativa senão submeter-se numa terrível forma de chantagem, era a de que, ao menos assim, teriam a sua sobrevivência assegurada.
A implantação de roças imprimiu um rumo à sociedade de São Tomé diferente daquele que em Cabo Verde, por força das circunstâncias se seguiu, o que fez com as duas colónias tenham tido, a partir dai, percursos diferentes. Mesmo assim, em São Tomé, o tipo de convívio entre os colonos e a população africana sempre se diferenciou do modelo de colonização adoptado nos territórios de Angola e Moçambique. Uma simples amostragem a partir do número de africanos que frequentavam as escolas secundárias naquelas três antigas colónias portuguesas será suficiente para definir a situação naqueles territórios na época colonial, diminuindo essa frequência de São Tomé para Angola e de forma dramática de Angola para Moçambique, onde essa frequência era quase nula, sobretudo nas grandes capitais, Lourenço Marques, hoje Maputo, e Beira. Não é por acaso que precisamente Moçambique foi, das antigas colónias portuguesas, o país que teve que lutar com maior dificuldade em quadros depois da independência. É verdade que nos anos que precederam a independência daquela antiga colónia portuguesa houve uma certa alteração nesse estado de coisas, motivada pela pressão da comunidade internacional sobre o governo português, mas tais medidas além de insuficientes chegaram já demasiado tarde.
Em Cabo Verde tudo se passou de forma diferente. Depois da abolição da escravatura e apesar da persistência em conservar de uma forma ou de outra as suas prerrogativas de classe dominante, a progressiva degradação do poder económico dos ex-senhores foi gradualmente retirando-lhes a capacidade de exercer um domínio real sobre a vida dos ex-escravos, apesar da persistência de uma postura de classe feita de gestos e atitudes. A falta de recursos em geral e o efeito devastador das secas sucessivas acabariam por aproximar uns e outros numa luta pela sobrevivência colectiva, desencorajando por outro lado a colonização massiva. Não se ia para Cabo Verde: saia-se de Cabo Verde, para procurar vida noutros lugares. Saia quem pudesse.
A exiguidade de recursos conduziu ao longo dos anos a uma vivência em comum, a uma busca constante de formas não só de conservação dos poucos recursos como de estratégias de superação das crises que cíclica e inevitavelmente assolavam as ilhas, condicionando as expectativas dos seus habitantes e, enquanto Cabo Verde foi colónia portuguesa, cabia ao Estado Português a responsabilidade de garantir a sobrevivência da população de um território que era considerado para todos os efeitos território português. Esse suporte não impediu que morressem milhares de pessoas à fome nos períodos mais críticos da sua historia como colónia, além da fome crónica e toda a espécie de carências que afectavam largos sectores da população: esse rosto familiar da miséria que o arquipélago se habituou a olhar como uma espécie de fatalidade.
Assumir a independência de um pais nessas condições podia ser visto como um acto de irresponsabilidade da parte de quem, aparentemente, nada tinha para dar em troca à população a não ser a possibilidade de autodeterminação. Nada mais senão a sua independência, para que pudesse livremente decidir sobre o seu destino. Mas que destino, sem recursos que pudessem assegurar uma autonomia mínima - de subsistência como ponto de partida - a não ser que contasse indefinidamente com a solidariedade internacional? Esta alternativa equivalia, para muitos, a substituir uma forma de dependência por outra, neste caso, da dependência de Portugal pela dependência da generosidade de outros países e organizações humanitárias internacionais. Essa era a responsabilidade dos novos dirigentes de Cabo Verde como Estado.
Apesar dos erros cometidos durante os primeiros anos de gestão dessa independência, penso que a sua assunção, longe de ter sido um acto de irresponsabilidade foi um acto de convicção e de confiança na capacidade do próprio povo cabo-verdiano para criar e desenvolver condições de viabilização da sua autonomia. Essa convicção e essa confiança, apesar de todas as dificuldades e dos erros ( muitos deles possivelmente evitáveis ) tiveram um impacte positivo na reacção das populações dentro e fora do país e na imagem que Cabo Verde conseguiu projectar junto da comunidade internacional. Não podemos subestimar a importância dessa projecção, cujos efeitos não deixam de ser mutuamente estimulantes. Para além de todas as críticas que se possam fazer ao regime sob o qual foram conduzidos os destinos de Cabo Verde durante as primeiras duas décadas da sua independência, é difícil não reconhecer o mérito dessa convicção, dessa confiança e dos seus efeitos. Por certo, mesmo aqueles cabo-verdianos que, sobretudo por razões de ordem politica e ideológica não aderiam à independência nas condições em que ela ocorreu, considerando-a como um acto de cumplicidade entre as forças politicas no poder em Portugal e um partido em Cabo Verde assumido, arbitrariamente segundo eles, como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, não deixam, se forem efectivamente cabo-verdianos, de sentir-se afectados de forma positiva e de regozijar-se, todas as vezes que a imagem de Cabo Verde no exterior se projecta de forma positiva. Este facto, por si, não deixa de reflectir a consciência nacional do que consideramos ser o povo cabo-verdiano. É essa consciência nacional que, quanto a nós, explica e justifica a luta pela independência de um povo. As opções politicas que cada povo assume na gestão da sua vida como nação independente são outro problema.
De qualquer forma, é a ele que cabe decidir, entre as diferentes opções que se lhe oferecem.
Viriato de Barros
Posto isto, vou ao que queria dizer.
Alguém oriundo de uma outra ex-colónia portuguesa disse-me uma vez:
“A vossa sorte em Cabo Verde é terem uma terra pobre”.
A sua conclusão baseava-se no raciocínio de que em Cabo Verde, pela sua escassez crónica de recursos naturais, nunca foi possível implantar um sistema de exploração que desse lugar ao tipo de sociedade que se criou nas outras colónias. Como as roças de S.Tomé, por exemplo. Ou as grandes plantações de Angola e Moçambique. Ou minas de diamante, ou petróleo. Essas fontes de riqueza foram pólos de atracção para uma corrente migratória de colonos a quem foram dadas condições muito especiais como forma de os atrair e fixar, enquanto, para assegurar esse estatuto, mantiveram as populações autóctones à margem da sociedade que foram criando e desenvolvendo. Não só as mantiveram à margem como lhes retiraram a sua dignidade como seres humanos pela opressão social e pelo desprezo, impondo-lhes um tratamento racista e humilhante. Qualquer colono ganhava automaticamente um estatuto de classe favorecida, enquanto às populações nativas foi imposto o regime de indigenato e o respectivo estatuto a que equivalia a restrição total dos direitos mais elementares. Os cabo-verdianos, tendo embora outros problemas, disso se livraram.
No caso de São Tomé, este território seguiu até um determinado momento da sua história um percurso semelhante ao de Cabo Verde e a parte africana da sua população conheceu uma relativa tranquilidade e liberdade de acção, e mesmo um certo desafogo, e o relacionamento com os poucos colonos dava-se numa base de mútua aceitação e reconhecimento. A alteração do sistema de produção com a implantação de roças veio alterar profundamente a vida da população de São Tomé. Apenas um exíguo número de famílias são-tomenses era detentor de terras. Instituiu-se em São Tome um regime de monocultura em que se explorava a fundamentalmente a produção de cacau e, em menor escala, café. A exploração destes dois grandes recursos agrários estava nas mãos de empresas sedeadas em Portugal ou de alguns empresários individuais. Os naturais de São Tomé recusaram-se a trabalhar nas roças, pelo que as mesmas passaram a recrutar trabalhadores de outras colónias, como Angola e Moçambique, mas principalmente de Cabo Verde. O sistema de exploração e o recrutamento de mão-de-obra teve naturalmente o apoio da administração colonial. Permitia por um lado, resolver o problema de mão-de-obra para a exploração das roças e, por outro lado, era uma forma de solucionar outros problemas como o das crises cíclicas provocadas pelas secas em Cabo Verde. As condições de trabalho eram degradantes, a forma como os trabalhadores eram transportados para São Tomé eram aviltantes, mas a lógica da Administração, lógica a que os próprios trabalhadores não tinham outra alternativa senão submeter-se numa terrível forma de chantagem, era a de que, ao menos assim, teriam a sua sobrevivência assegurada.
A implantação de roças imprimiu um rumo à sociedade de São Tomé diferente daquele que em Cabo Verde, por força das circunstâncias se seguiu, o que fez com as duas colónias tenham tido, a partir dai, percursos diferentes. Mesmo assim, em São Tomé, o tipo de convívio entre os colonos e a população africana sempre se diferenciou do modelo de colonização adoptado nos territórios de Angola e Moçambique. Uma simples amostragem a partir do número de africanos que frequentavam as escolas secundárias naquelas três antigas colónias portuguesas será suficiente para definir a situação naqueles territórios na época colonial, diminuindo essa frequência de São Tomé para Angola e de forma dramática de Angola para Moçambique, onde essa frequência era quase nula, sobretudo nas grandes capitais, Lourenço Marques, hoje Maputo, e Beira. Não é por acaso que precisamente Moçambique foi, das antigas colónias portuguesas, o país que teve que lutar com maior dificuldade em quadros depois da independência. É verdade que nos anos que precederam a independência daquela antiga colónia portuguesa houve uma certa alteração nesse estado de coisas, motivada pela pressão da comunidade internacional sobre o governo português, mas tais medidas além de insuficientes chegaram já demasiado tarde.
Em Cabo Verde tudo se passou de forma diferente. Depois da abolição da escravatura e apesar da persistência em conservar de uma forma ou de outra as suas prerrogativas de classe dominante, a progressiva degradação do poder económico dos ex-senhores foi gradualmente retirando-lhes a capacidade de exercer um domínio real sobre a vida dos ex-escravos, apesar da persistência de uma postura de classe feita de gestos e atitudes. A falta de recursos em geral e o efeito devastador das secas sucessivas acabariam por aproximar uns e outros numa luta pela sobrevivência colectiva, desencorajando por outro lado a colonização massiva. Não se ia para Cabo Verde: saia-se de Cabo Verde, para procurar vida noutros lugares. Saia quem pudesse.
A exiguidade de recursos conduziu ao longo dos anos a uma vivência em comum, a uma busca constante de formas não só de conservação dos poucos recursos como de estratégias de superação das crises que cíclica e inevitavelmente assolavam as ilhas, condicionando as expectativas dos seus habitantes e, enquanto Cabo Verde foi colónia portuguesa, cabia ao Estado Português a responsabilidade de garantir a sobrevivência da população de um território que era considerado para todos os efeitos território português. Esse suporte não impediu que morressem milhares de pessoas à fome nos períodos mais críticos da sua historia como colónia, além da fome crónica e toda a espécie de carências que afectavam largos sectores da população: esse rosto familiar da miséria que o arquipélago se habituou a olhar como uma espécie de fatalidade.
Assumir a independência de um pais nessas condições podia ser visto como um acto de irresponsabilidade da parte de quem, aparentemente, nada tinha para dar em troca à população a não ser a possibilidade de autodeterminação. Nada mais senão a sua independência, para que pudesse livremente decidir sobre o seu destino. Mas que destino, sem recursos que pudessem assegurar uma autonomia mínima - de subsistência como ponto de partida - a não ser que contasse indefinidamente com a solidariedade internacional? Esta alternativa equivalia, para muitos, a substituir uma forma de dependência por outra, neste caso, da dependência de Portugal pela dependência da generosidade de outros países e organizações humanitárias internacionais. Essa era a responsabilidade dos novos dirigentes de Cabo Verde como Estado.
Apesar dos erros cometidos durante os primeiros anos de gestão dessa independência, penso que a sua assunção, longe de ter sido um acto de irresponsabilidade foi um acto de convicção e de confiança na capacidade do próprio povo cabo-verdiano para criar e desenvolver condições de viabilização da sua autonomia. Essa convicção e essa confiança, apesar de todas as dificuldades e dos erros ( muitos deles possivelmente evitáveis ) tiveram um impacte positivo na reacção das populações dentro e fora do país e na imagem que Cabo Verde conseguiu projectar junto da comunidade internacional. Não podemos subestimar a importância dessa projecção, cujos efeitos não deixam de ser mutuamente estimulantes. Para além de todas as críticas que se possam fazer ao regime sob o qual foram conduzidos os destinos de Cabo Verde durante as primeiras duas décadas da sua independência, é difícil não reconhecer o mérito dessa convicção, dessa confiança e dos seus efeitos. Por certo, mesmo aqueles cabo-verdianos que, sobretudo por razões de ordem politica e ideológica não aderiam à independência nas condições em que ela ocorreu, considerando-a como um acto de cumplicidade entre as forças politicas no poder em Portugal e um partido em Cabo Verde assumido, arbitrariamente segundo eles, como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, não deixam, se forem efectivamente cabo-verdianos, de sentir-se afectados de forma positiva e de regozijar-se, todas as vezes que a imagem de Cabo Verde no exterior se projecta de forma positiva. Este facto, por si, não deixa de reflectir a consciência nacional do que consideramos ser o povo cabo-verdiano. É essa consciência nacional que, quanto a nós, explica e justifica a luta pela independência de um povo. As opções politicas que cada povo assume na gestão da sua vida como nação independente são outro problema.
De qualquer forma, é a ele que cabe decidir, entre as diferentes opções que se lhe oferecem.
Viriato de Barros
quinta-feira, 9 de março de 2006
Cape-Verdean minority in Portugal and the local authorities
Convegno Internazionale: L’intercultura nel pubblico impiego
Pesaro, 3-4 July 2005
Cape-Verdean minority in Portugal and the local authorities: housing and schooling policies
By Viriato de Barros
Abstract
Cape-Verdean emigration to Portugal suffered a change of status as a result of the independence: in the colonial times the Cape-Verdeans were considered Portuguese citizens who came to live in Portugal, mainly to work in the civil construction and tending to settle around the new construction sites, like Reboleira, Amadora etc., building very simple huts and living in precarious conditions, this way saving as much as they could to send some money to their families, most of them from the island of Santiago. In later stages, many of these Cape-Verdeans sent for their families and settled in areas in connection with their work. That is how poor quarters like the ones in Pedreira dos Húngaros, Marianas, Circunvalação emerged.
With the independence of Cape Verde in 1975, the Cape-Verdeans kept on emigrating, in many instances using illegal schemes. With the exception of those who remained Portuguese by right, the Cape-Verdeans now migrated to Portugal as foreign citizens, which required a different legal procedure for them to be able to live and work in Portugal.
With the increase of the number of Cape-Verdean families who settled in different neighbourhoods of Lisbon and in the suburbs, namely in Amadora, Damaia, Buraca, Cova da Moura, etc. a corresponding new generation of Cape-Verdeans emerges, whose behaviour and attitudes take a different direction from the previous generation, often in conflict both with their parental values and with the non-Cape-Verdean communities in which they are inserted. Many of these so-called second generation Cape Verdean immigrants adopted aggressive attitudes and isolated themselves inside ghetto cultures. Illegal and marginal activities such as drug dealing and youth gangs find a fertile ground in such social and economic conjunctures.
(READ MORE IN: http://www.multiculturas.com/INTI/ViriatoBarrosPesaro.pdf )
Pesaro, 3-4 July 2005
Cape-Verdean minority in Portugal and the local authorities: housing and schooling policies
By Viriato de Barros
Abstract
Cape-Verdean emigration to Portugal suffered a change of status as a result of the independence: in the colonial times the Cape-Verdeans were considered Portuguese citizens who came to live in Portugal, mainly to work in the civil construction and tending to settle around the new construction sites, like Reboleira, Amadora etc., building very simple huts and living in precarious conditions, this way saving as much as they could to send some money to their families, most of them from the island of Santiago. In later stages, many of these Cape-Verdeans sent for their families and settled in areas in connection with their work. That is how poor quarters like the ones in Pedreira dos Húngaros, Marianas, Circunvalação emerged.
With the independence of Cape Verde in 1975, the Cape-Verdeans kept on emigrating, in many instances using illegal schemes. With the exception of those who remained Portuguese by right, the Cape-Verdeans now migrated to Portugal as foreign citizens, which required a different legal procedure for them to be able to live and work in Portugal.
With the increase of the number of Cape-Verdean families who settled in different neighbourhoods of Lisbon and in the suburbs, namely in Amadora, Damaia, Buraca, Cova da Moura, etc. a corresponding new generation of Cape-Verdeans emerges, whose behaviour and attitudes take a different direction from the previous generation, often in conflict both with their parental values and with the non-Cape-Verdean communities in which they are inserted. Many of these so-called second generation Cape Verdean immigrants adopted aggressive attitudes and isolated themselves inside ghetto cultures. Illegal and marginal activities such as drug dealing and youth gangs find a fertile ground in such social and economic conjunctures.
(READ MORE IN: http://www.multiculturas.com/INTI/ViriatoBarrosPesaro.pdf )
quinta-feira, 2 de março de 2006
Para Lá de Alcatraz

RomanceExcerto:...No seu reencontro com Mindelo, David percorria as ruas da cidade a pé, ora só, ora acompanhado, atento a tudo o que o rodeava, numa redescoberta do que quinze anos antes deixara. O escritor Vitorino Nemésio, outro ilhéu, que uma vez passou por Mindelo vindo do Brasil, comparou as árvores da Rua de Lisboa, a nobre artéria da cidade, a pincéis de barba gastos pelo uso. A comparação tinha sido feita com simpatia, quase ternura. Não obstante, David lembrava-se de que a descrição não lhe tinha agradado muito na altura, por mais poética que outros leitores a tivessem achado. Mas quando desta vez olhou para aquelas árvores que enfeitavam a cidade de B.Léza, José Lopes, Roque Gonçalves, Frusoni, Djunga, Jota Monte e Manuel de Novas, não deixou de sorrir: autênticos pincéis de barba! Sim, mas quem usa esse método para se barbear, conhece o apego que se ganha àquele pincel usado, retorcido e gasto com que diariamente afagamos o rosto nesse ritual matutino.A pouco e pouco, de ternura em ternura, sorriso em sorriso, interior, topada em topada, exterior, David foi recuperando o Mindelo que quinze anos atrás, com muita relutância, adolescente, deixara. E as grandes referências ali estavam afinal: para além da imensa baía azul, do Monte Cara e das areias douradas de Salamansa, Matiota, Lajinha, Praça Nova, Eden Park, o Liceu, o Palácio, as lojas, farmácias, botequins, canecadinhas. Até algumas daquelas chamadas figura típicas da terra; só que quinze anos mais velhas, as que sobreviveram. Mas coisas novas animavam a cidade. Prédios, Hotel Novo, Novo Cinema do Tuta, animado, alegremente ruidoso, em concorrência amigável, fraterna, com o já clássico Eden Park. Certos cafés ou bares eram verdadeiras instituições, como o Bar Estrela e o Mochin Mercone, e outros novos se intituiram. Era só acertar o passo e retomar o pé.
domingo, 26 de fevereiro de 2006
Extractos do livro «Identidade»

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