quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O Holograma Único de Rose Nery Sttau Monteiro

O Holograma Único
de Rose Nery Sttau Monteiro



A leitura de “Holograma Único” não é leitura fácil. Obriga-nos a uma tomada de consciência da realidade para além do imediato, do aparentemente real, da superfície. A cada passo torna-se evidente a cultura temporal da autora, que passa pelos pensadores da época da cultura a que chamamos ocidental, greco-judaico-latina. Na sua perspectiva da realidade é actual, incrivelmente actual. Ninguém inventa nada no pensamento humano. Se virmos bem, é como se não houvesse nada de novo sobre a face da terra, mas neste sentido a acomodação sucessiva às novas formas de prisão de consciência, desde o poder clerical medieval e seus prolongamentos, aos tempos modernos das prisões político-ideológicas.
Interessante, na falta de outro termo que melhor a defina, esta coligação, que alguns desses bem castigados no seu livro chamariam promiscuidade, entre o intelectualizante e o terra a terra, como dizer “a escalada até aqui não é pêra doce”, e depois “senhor que ganhasse juízo”. É como se a autora nos agarrasse sempre à realidade, essa que vivemos dia a dia e que oculta outra que tentamos entender, mas nunca entendemos. Vamos então aos livros sagrados em busca do conhecimento.
A memória histórica é curta. Essa que vem desde os Gregos. Mas esses já tinham outra, que não conhecemos. Fico por aqui. Não consigo ir mais longe. Rose Nery consegue-o, e vai muito mais longe.
Tentemos acompanhar o que ela nos conta:

"Bem que uma vez um latinista, lá do estabelecimento de ensino - o advérbio “lá” aqui não é inocente - onde fiz o liceu, explicou que o cérebro nunca se cansa, pelo que se pode constatar, também nem se deixa congelar. Naquela convicção obrigava os educandos a estudarem durante o dia inteiro, aliviando-se de estoirados apenas às quatro horas, e por escassos minutos, uma violência! Há outras tarefas em que um jovem se pode ocupar amealhando saberes, as crianças principalmente, sem lhes castigar de obrigação o feitio do corpo e a inteligência. Todavia, ninguém socorre as escolioses dos infantes a caminho da escola, vítimas das albardas de livros, suspensos dos ombros, anos a fio e logo pela madrugada, cangas debaixo de intempéries.
Quem viveu em Cabo Verde – não, não basta simplesmente ter vivido em Cabo Verde, é preciso ser-se cabo-verdiano, não importa de onde tenha vindo – entenderá tão bem estas histórias dentro da história de Rose Nery:

“Séculos passados, eu não preciso de abrir nada, e de cor recito com todas as pausas de exigência “Os Pobrezinhos” do livro da Primeira Classe? “Minha mãe, é uma pobrezinha que veio bater à porta”. A mãe veio logo com um prato de sopa e deu ao mendigo”... E por aí adiante até ao final”

Não há aqui sentimentalismo lamecha, ocioso. Há uma realidade vivida, bem localizada entre as pessoas e lugares.

“Também sabia a “Visitai os enfermos” , na página dezoito, faz de conta, pois já não me lembro da paginação dos livros do Estado Novo, e como o prejuízo do fluir deste episódio, não o largo para , à pressa, uma investigação numa biblioteca lá para Benfica, onde manuseei uma daquelas avis rara.”
Em Rose Nery a cultura greco-latina-judaico-cristã-ocidental não desenraizou a menina oriunda das ribeiras de São Antão.
Essa é a menina que eu vejo sempre, aquela menina muito loirinha, sorridente, de olhos muito vivos, que conheci no meio de outros meninos e meninas de todas as cores em Cabo Verde.
Essa a Rose Nery que conheço e continuo sempre a ver. A Rose Nery que um dia escreveu um livro em que conta coisas como:
“...No lusco-fusco, os meninos, acocorados, apertavam-se uns contra os outros, chegada a hora dos contos de meter medo e de se arrepiar ao limite do pavor, tanto melhor. Também este importados, pois quando os navegadores no tempo antigo da monarquia portuguesa, acharam aquelas ilhas, não encontraram nelas nenhuma população autóctone para dizer nada da sua vida, e muito menos dar conta do seus medos A bem dizer, para ali, tudo de importação, sendo que o animal feroz, a centopeia, e vá-se lá a afirmar, que tamanhas bichas não tenham desembarcado do porão de algum navio, que por aquelas montanhas fabulosas de dimensão, não havia clima nem regojo para um animal próprio da humidade dos esgotos. Durante séculos, escoador inexistente por lá! Se fora de casa, meninos e graúdos se aliviavam da cachupa do meio-dia nos campos, uma pedra lisa, bem assoprada, servia para limpeza.”

Ah Cabo Verde, como tu, só tu!

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Percursos-2

Karl Marx é muitas vezes citado como tendo definido a religião como uma espécie de ópio que se dá ao povo para o enganar. Povo que ninguém foi ainda capaz de dizer quem. Se sou eu e tu, se somos todos, se são coitados, esfarrapados, desgraçados, vítimas de uma sociedade organizada para proteger os mais espertos, que arranjaram uma situação de vantagem à custa dos outros a quem não foi dada essa vantagem, ou então que não foram suficientemente espertos, ou que não estiveram suficientemente alertas para não se deixar explorar, ou, simplesmente, porque não tiveram outra alternativa ou meios de defesa. Como poderiam, se os outros sabiam mais? Como poderiam se os outros já tinham mais? Se nem sequer a natureza distribuiu igualmente a esperteza. Aqui começo a confundir natureza e Deus. Ou a juntá-los como a mesma realidade. Tenho a capacidade de pensar que leva a perceber que há algo que se chama realidade. Mas também a capacidade de pensar que aquilo que penso ser realidade não é a mesma coisa para todos. Será que cada um tem a sua realidade?
Tantas vezes tenho discutido aquilo que penso ser a realidade para no fim verificar que essa não é, para os meus interlocutores, a realidade. Esse limiar que separa o que para uma pessoa considerada lúcida daquilo que um alucinado toma por realidade. Onde termina a realidade do são e começa a do alucinado? O que é a lucidez? Como determinar e quem determina. os limites da lucidez, ou os padrões de aferição da lucidez. Será, por exemplo, o misticismo religioso um estado superior de lucidez ou um estado mental provocado pelo efeito físico, neurológico, psíquico, de componentes químicos do organismo do homem que influem no seu comportamento ou o determinam, ou serão, inversamente, essas reacções desencadeadas pelos processos mentais e que explicariam, por exemplo, o fenómeno de estigmatização nos místicos? Como se ascende do físico ao espiritual e ao místico? Haverá uma inteligência biológica, na falta de outro termo, que se reflecte no que se chama instinto, intuição, capacidade que se desenvolve mais nuns do que noutros, em função das necessidades de adaptação aos meios em que cada ser humano habita e se desenvolve?
Pertencemos a uma civilização em que os dados de conhecimento a partir dos quais formulamos juízos sobre os outros não englobados por este conceito de civilização, nos são fornecidos pelas pesquisas, análises e conclusões da Antropologia, Sociologia, Psicologia, Filosofia, as principais disciplinas do estudo e conhecimento do homem e do universo, matéria em que pouco temos avançado desde a Antiguidade, desde Platão, Sócrates, Aristóteles.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Coisas de Cabo Verde

Coisas de Cabo Verde - 1



Há coisas em Cabo Verde, que nós aceitamos como factos muito naturais numa determinada altura da nossa vida em Cabo Verde, mas que depois, uma análise retrospectiva leva-nos a tirar deles algumas ilações, sobretudo quando nos confrontamos com outras sociedades.
Por exemplo, lembro-me, quando vivia na ilha do Fogo, ainda criança, havia lá um cidadão de S.Filipe cujo nome de registo nunca cheguei a saber, que era conhecido e referido por todos pelo nome de Prétu, assim pronunciado, ou seja Preto em português. Prétu terá acabado por assumir naturalmente ou a contragosto, essa espécie de segundo nome, a maior parte das pessoas em Cabo Verde têm e que nos habituamos a chamar “nominho”. Possivelmente uma noção instintiva de estratégia defensiva para quem não quer segregar-se da comunidade em que vive é simplesmente assumir o segundo nome , que por vezes começou por ser uma alcunha como a qual se acaba por viver em paz. caso contrário o risco é cair num vórtice de acções e reacções que, se não conduz à loucura, leva a diversas formas de auto-isolamento ou alienação. Só que quando um indivíduo passa a ser identificado na comunidade em que vive pelo nome de Prétu, não se trata aqui de um epíteto racista, mas simplesmente de identificação pessoal. Passa a ser o seu nome popular, que acaba por sobrepor-se ao nome de registo ou de baptismo, a tal ponto que, se alguém lhe endereçar uma carta com o nome de registo, possivelmente ninguém saberá quem é o destinatário.
A observação dessas situação levam-nos a concluir que em Cabo Verde, por razões diversas da sua história, se criou a partir dos africanos e europeus que se fixaram nas ilhas, uma sociedade com características muito próprias que vale a pena analisar com maior cuidado e profundidade, pois talvez nos dê pistas para solução de problemas de exclusão, integração e inserção social de minorias étnicas em sociedades de acolhimento de imigrantes de diferentes origens e culturas que os diferenciam dos autóctones das sociedades. para onde emigram.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

O Efeito Obama

Algumas considerações sobre a eleição de Barack Obama


Os cabo-verdianos, pelo que pude observar, acompanharam a candidatura de Obama com particular interesse, diria mesmo com crescente ansiedade, à medida que ia decorrendo o processo eleitoral americano para a escolha do novo Presidente dos Estados Unidos, processo que esteve no centro das atenções de todo o mundo.
A importância dos Estados Unidos, as implicações do que possa acontecer naquele pais, cuja população se constituiu com imigrantes do mundo inteiro e o seu peso na economia mundial que foi assumindo proporções cada vez mais globalizantes, explicam e justificam essa atenção
A interdependência económica e política entre os diferentes Estados, quer se queira quer não, é, com efeito, uma realidade do nosso dia-a-dia. Não é portanto por mera curiosidade estimulada pela acção dos meios de comunicação de massas que estamos tão atentos a estas eleições e ao seu desfecho com que, creio eu, e falando como cabo-verdiano, nos regozijamos.
Ao longo de todo este processo não pude deixar de fazer uma reflexão retrospectiva sobre as minhas posições pessoais e as de muitos da minha geração que acompanhamos tão intensamente as notícias que até nós chegavam da descriminação racial nos Estados Unidos a que estavam sujeitos os cidadãos americanos oriundos de África, para lá levados num monstruoso acto de violência para trabalharem como escravos dos donos brancos das plantações do Sul dos Estados Unidos. Como meras mercadorias.
A abolição formal da escravatura não alterou na sua essência a situação daqueles africanos ou dos seus filhos e netos agora cidadãos americanos, se é que se podia chamar cidadãos os homens, mulheres e crianças excluídos da sociedade por causa da sua da sua origem étnica ou, se preferirem, pela sua raça, ironicamente estigmatizados justamente por terem sido escravos e nessa condição trabalhado à força para os donos das grandes plantações de algodão e outros produtos de que se alimentava a indústria americana e as classes socialmente promovidas pelo desenvolvimento industrial atingido graças a esse trabalho.
Esses africanos, chamados negros pelos outros, designação tantas vezes acompanhada de epítetos pejorativos, se não obscenos, passam a constituir a camada mais baixa dessa sociedade multiétnica, condições que se prolongam sob diversas forma até aos tempos relativamente recentes. Tão recentes numa perspectiva histórica como os tempos de um Elvis Presley, um homem do Sul dos Estados Unidos e em cujas canções mais célebres ressoavam os ritmos africanos americanos dos “blues”e outras variantes de ritmos africanos trazidos para América pelos escravos. Cito Elvis Presley ao talhe da foice, porque, quando uma jornalista uma vez lhe perguntou o que ele achava sobre a questão dos Negros na América, respondeu simplesmente, e passo a citar:
“I have no use for Negroes, except for shining my shoes”
A consciência dessa realidade levou-me nesse tempo a afirmar a uma conterrânea nossa imigrante nos Estados Unidos que se encontrava de férias em Lisboa, a propósito da nossa emigração naquele pais que pessoalmente não estava interessado em lá viver, mesmo que me dessem essa oportunidade. Perante a minha atitude, perguntou-me qual era a razão dessa minha recusa. Respondi-lhe que, apesar do meu desejo de seguir o destino dos meus conterrâneos e parentes que se tinham fixado nos Estados Unidos, sobretudo na região da Nova Inglaterra, eu não o faria. Não gostava do sistema de vida americano e que por essa razão não via a hipótese de eu para lá emigrar. “Mas por quê ?”, tinha-me ela perguntado. A essa pergunta respondi simplesmente “porque havia lá muito racismo.
A minha interlocutora era professora universitária na região de Nova Inglaterra. Tinha emigrado de Cabo Verde criança com a família. A essa minha reserva reagiu dizendo-me “Nós temos o melhor sistema do mundo. É verdade o que diz sobre o racismo na América, mas nós estamos a lutar para mudar essa situação.”
Nesse mesmo período, tinha começado a tomar forma na América um movimento generalizado de afirmação de identidade dos afro- americanos e de luta pelos seus direitos. Foi nessa altura que surgiu o movimento liderado por Luther King, nos moldes da resistência pacífica conduzida na Índia por Mahatma Ghandi, mas também dos que defendiam responder à injustiça e abusos de que eram alvos pela via da acção violenta, pagando violência com violência, opondo uma força a outra força. É nessa forma de luta que surgem os Black Panthers e o tipo de acção liderado por Malcom X e outros.
Paralelamente foi tomando corpo o movimento designado por “Affirmative Act”, consubstanciado numa autêntica revolução de conceitos, atitudes e comportamento, protagonizado por figuras hoje esquecidas como Ângela Davis e outras. Os africanos americanos decidiram de uma vez por todas deixar de ser objecto da evolução da sociedade americana para serem sujeitos dessa evolução.
O assassinato de Luther King numa vã tentativa de travar a luta dos que passaram a chamar-se African Americans, desencadeou uma reacção violenta generalizada dos Africanos que culminou nos tumultos raciais que sacudiram os grande centros urbanos, designadamente Washington, obrigando os poderes constituídos a rever toda a situação e ajustar-se a ela. Não vou entrar nos pormenores da história desta luta. Quero apenas aqui confrontá-la com o presente e constatar o caminho percorrido desde desse período até aos nossos dias, e, ao fazê-lo não posso deixar de lembrar as palavras daquela minha conterrânea, com quem vim reencontrar-me na cidade da Praia no primeiro ano da Independência de Cabo Verde, fazendo parte de um grupo de imigrantes cabo-verdianos nos Estados Unidos que foram para Cabo Verde dar a sua contribuição na construção de um país independente, país da sua origem.
A posição que os descendentes africanos ocupam hoje nos Estados Unidos está longe de ser a mesma que era nesses anos a que me referi, mas o que até aqui se tem conseguido foi-o à custa de muita luta e do sacrifício de muitos, dos quais muitos com o da própria vida. Não foi pois por mera casualidade ou simples simpatia pessoal que foi possível ver hoje um candidato de origem africana, um negro como nessa sociedade ele é classificado, à presidência dos Estados Unidos, e um candidato vitorioso, reconhecido pela grande maioria dos cidadãos americanos. Algo mudou nessa sociedade. Algumas décadas atrás seria impensável. Algo que deixou, e não só nos Estados Unidos, uma esperança nova, sobretudo quando pensamos que há efectivamente uma crise internacional. Uma crise financeira, económica e política, a que corresponde um cepticismo generalizado em relação aos políticos em geral e aos dirigentes políticos e particular. Todos têm consciência do desfio que o próximo presidente dos Estados Unidos irá enfrentar. E tratando-se de um Africano Americano maior ainda é o peso dessa responsabilidade, pois não faltarão detractores à espreita do mínimo erro que cometa ou passo em falso ou que lhes pareça que tenha dado.
A verdade é que por toda a América há efectivamente uma nova esperança e uma vontade de alinhar num esforço colectivo para debelar a crise existente.
Segundo li, nunca, por exemplo, os Cabo-verdianos na América acorreram em número tão grande às urnas como agora. O que é um sinal positivo da sua cidadania. Durante muito tempo a comunidade cabo-verdiana manteve-se afastada da luta dos africanos americanos, não se identificando abertamente com ela, apesar da consciência da sua origem africana e dos efeitos que directa ou indirectamente as estagnações ocorridas ou os avanços conseguidos por esse grupo étnico se reflectiriam na sua própria comunidade.
O afastamento da comunidade cabo-verdiana do conflito inter-racial que envolvia os negros e os brancos americanos era motivado por um lado por razões de ordem cultural que levavam os cabo-verdianos a situarem-se num espaço próprio, distante de uns e outros, por outro lado por instinto de auto-protecção que os afastava dos referidos conflitos.
Não se identificando com os afro-americanos, nem com os outros americanos tão pouco, refugiavam-se na sua própria comunidade, preservando a sua identidade cabo-verdiana. Essa forma de estar levou a que muitos se referissem a eles com “ some funny Puertoricans” situação tão bem caracterizada no livro com esse título uma escritora cabo-verdiano-americana. .
Daí o diálogo ficcionado por mim no romance “Identidade” entre um cabo-verdiano de terceira geração que perante os seus protestos de identificação como afro-americano ou simplesmente “black” junto de um outro membro da comunidade africana americana correntemente assim designada, foi confrontado com a observação da parte do outro: “ You say you are black, but you don’t act black”
“To act black” implicava certos maneirismos e uma maneira de se expressar na língua inglesa que esse cabo-verdiano, apesar de ter nascido na América não tinha, criado, como tinha sido, nos hábitos e costumes da comunidade cabo-verdiana e portador da cultura subjacente a esses hábitos e costumes.
Claro que o isolamento cultural tende a geral atitudes racistas da parte de quem se isola, e facilmente se introduzem numa comunidade vícios da sociedade envolvente e dominante, no caso presente caracterizado por comportamentos racistas, em que entre os alvos eleitos parecem ser os cidadãos de origem africana. Como diríamos na nossa língua: “Forti sina!”.
Para quem sai de uma terra como Cabo Verde e tenta por força das circunstâncias, integrar-se nesse tipo de sociedade, a situação é complexa e inevitavelmente alienante. Em Cabo Verde não tinha esses problemas. Teria certamente outros problemas, mas não esses. De repente vê-se confrontado com eles.
É preciso ter passado por situações dessas para se ter a dimensão real dos traumatismos por eles e neles gerados, mas também da estratégia desenvolvida para nelas sobreviver preservando a sua dignidade humana e a sua própria identidade. Há como que um inconsciente colectivo que impulsiona as nossas reacções e acções, ou inibição das mesmas delas. É precisamente a esse nível que se situa também a conscientização de massas que poderá levar a uma mudança de atitude. em que deixamos de ser objectos para sermos os sujeitos ou motores dela. Creio que é essa mudança que determina toda a luta de libertação, seja qual for a forma que assuma. E é precisamente nesse enquadramento que situamos as lutas de libertação, que conduziram à independência dos povos sob a dominação colonial. Curiosa coincidência esta num momento em que de uma certa forma celebramos a eleição de Barak Obama, com a data do assassinato de um dos maiores lideres da luta dos Africanos pela defesa da sua dignidade e independência que foi Amílcar Cabral, cuja memória aqui hoje honramos.
Já que me propus falar sobre o significado da eleição de Barak Obama para Presidente dos Estados Unidos, quero crer que a esperança nova criada por essa aura que envolve o próximo residente da Casa Branca se situa precisamente na consciência dessa mudança e de que o que até aqui foi conseguido, não o foi por obra de acaso, mas sim o resultado de uma longa e árdua luta. Algo mudou na América e noutra parte do mundo também, como essa em que vivemos. Mas nada foi dado.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

A Beleza de Cabo Verde

A beleza das nossas ilhas é feita de contrastes entre rochas soberbas, areais imensos e o azul do mar, que na nossa proximidade toma tons de um verde cuja intimidade nos envolve inevitavelmente.
É feita da imponência das das nossas rochas e das nossas montanhas...
Creio que a beleza das ilhas de Cabo Verde está na imensa variedade de cenários geográficos e humanos que nos vai oferecendo de ilha para ilha.

Já uma vez, numa maré de saudade da terra, dei comigo a escrever, quase compulsivamente, um texto sobre a impressonante entrada da baia do Porto Grande de São Vicente e dos estonteantes areais que envolvem a ilha. Mas se quiserem ver montanhas que são autênticas catedrais de rocha, vão até Santo Antão, e depois percorram as suas ribeiras, essas como a Ribeira do Paúl, de águas cantantes, que sulcam as rochas da ilha.
Visitem a ilha Brava, e percorram os seus caminhos ladeados de cardeais e purgueiras, e as suas avenidas de acácias rubras, mas desçam também até ao fundo das ribeiras verdes de Fajã de Água e dos Ferreiros, Aguada e Tantum, até ao mar, e sintam o encanto dessa ilha, que alguém já comparou a Brigadoon, mítica aldeia da Escócia envolta em brumas, ficcionada numa célebre opereta com esse nome. Ilha Brava, que Eugénio Tavares cantou para a eternidade.
Da Brava viajem até à Ilha do Fogo e sintam a magestade do seu Vulcão, mas também os recantos de verde dos milheirais, das vinhas e feijoais, dos rubros e amarelos das flores de campo que povoam a ilha, e disfrutem o incrível cenário que se avista do topo das montanhas, vejam esse mar largo que a envolve e as silhuetas das outras ilhas irmãs ao longe: a Ilha Brava mesmo ali em frente, Santiago ao lado, São Nicolau ao longe, nos dias claros.
Dai vão até Santiago. Em Santiago, dêem um salto primeiro até à Cidade Velha, antiga Ribeira Grande, que foi outrora a capital da Colónia de Cabo Verde. Mas antes de deixar a Cidade Velha, subam até à Fortaleza e vejam daí o mar à volta. Jorge Barabosa diria :
“O mar, sempre o mar à nossa volta... o desassego do mar...”
Mas o mar visto dali da fortaleza é um mar imenso e calmo. Um mar sem dono, que nos apela a conhecer outras terras, a conhecer o mundo.
Não conheço a Ilha do Maio, ali perto, mas dizem que é outra ilha mágica. Só indo lá , saberemos o que é o Maio. O Maio para mim é como uma reserva de tranquilidade e beleza simples, que gostaria de guardar em segredo, avaramente, para que não vá ninguém estragar o que lá há. Peço-vos pois, não contem a ninguém o que vos disse sobre a ilha.
Acho que deve ser parecida com a Ilha da Boa Vista, mas mais pequena. Ou, se calhar, com o Sal.
O Sal. A Ilha do Sal. Acho que todos os cabo-verdianos que viajam de avião têm uma dívida para com o Sal. E porquê?
Porque passam pelo Sal e não conhecem o Sal como deve ser. Claro que o Sal é um espaço magnífico de turismo.Não há no mundo outra praia como a Praia de Santa Maria. E há hoteis, excelentes hoteis de turismo. Mas vejam bem a Vila de Santa Maria, andem pelas ruas de Espargos, vão até Fiúra ver o mar ali numa expressão rebelde, diferente, irreverente, mas extremamente belo, e as rochas que nos magnetizam numa contemplação em que a noção do tempo se esvai e perde.
Gostaria de vos descrever a beleza da Boa Vista, feita de praias de areia cintilante, de dunas e campos de pastagens. E sítios à beira-mar que falam de sagas marítimas, encalhes e moias, de tesouros no fundo do mar, de naufrágios e de pirataria.
E falo agora de S.Nicolau, em último mas não o menor lugar. Antes pelo contrário: é, só por si, um gosto que daria para escrever um livro, mesmo quando Baltazar Lopes já escreveu o incomparável Chiquinho da nossa permanente admiração.
S.Nicolau é impossivel de se descrever, quando tentamos procurar um lugar por onde começar. Pela Vila da Ribeira Brava, pelo Cachaço, pela Queimadas, pelo Monte Gordo, pelo Tarrafal pelo Cabeçalinho, pelo Curralinho? Se calhar é melhor ir até ao Norte, que não é o Norte dos pontos cardeais, mas de nome só. Ou então pela Ribeira Prata, ou antes pela Fajã, pelo Morreome e Pico Agudo de João Lopes, um dos homens da Claridade, a que ele próprio deu o nome de Egolândia.São Nicolau? Uma civilização, volto a dizê-lo, como em tempos já o tinha escrito.
E Santa Luzia? Desabitada. Será justo chamar-lhe desabitada quando durante tantos anos viveu um homem que ali guardava o gado de um proprietário de S.Nicolau? Pelo menos naquela altura poderia dizer-se que o Ilha de Santa Luzia era habitada por um homem e umas tantas cabeças de gado. Se fosse na America chamar~lhe-iam um “cowboy”. Um cowboy solitário.