quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O Holograma Único de Rose Nery Sttau Monteiro

O Holograma Único
de Rose Nery Sttau Monteiro



A leitura de “Holograma Único” não é leitura fácil. Obriga-nos a uma tomada de consciência da realidade para além do imediato, do aparentemente real, da superfície. A cada passo torna-se evidente a cultura temporal da autora, que passa pelos pensadores da época da cultura a que chamamos ocidental, greco-judaico-latina. Na sua perspectiva da realidade é actual, incrivelmente actual. Ninguém inventa nada no pensamento humano. Se virmos bem, é como se não houvesse nada de novo sobre a face da terra, mas neste sentido a acomodação sucessiva às novas formas de prisão de consciência, desde o poder clerical medieval e seus prolongamentos, aos tempos modernos das prisões político-ideológicas.
Interessante, na falta de outro termo que melhor a defina, esta coligação, que alguns desses bem castigados no seu livro chamariam promiscuidade, entre o intelectualizante e o terra a terra, como dizer “a escalada até aqui não é pêra doce”, e depois “senhor que ganhasse juízo”. É como se a autora nos agarrasse sempre à realidade, essa que vivemos dia a dia e que oculta outra que tentamos entender, mas nunca entendemos. Vamos então aos livros sagrados em busca do conhecimento.
A memória histórica é curta. Essa que vem desde os Gregos. Mas esses já tinham outra, que não conhecemos. Fico por aqui. Não consigo ir mais longe. Rose Nery consegue-o, e vai muito mais longe.
Tentemos acompanhar o que ela nos conta:

"Bem que uma vez um latinista, lá do estabelecimento de ensino - o advérbio “lá” aqui não é inocente - onde fiz o liceu, explicou que o cérebro nunca se cansa, pelo que se pode constatar, também nem se deixa congelar. Naquela convicção obrigava os educandos a estudarem durante o dia inteiro, aliviando-se de estoirados apenas às quatro horas, e por escassos minutos, uma violência! Há outras tarefas em que um jovem se pode ocupar amealhando saberes, as crianças principalmente, sem lhes castigar de obrigação o feitio do corpo e a inteligência. Todavia, ninguém socorre as escolioses dos infantes a caminho da escola, vítimas das albardas de livros, suspensos dos ombros, anos a fio e logo pela madrugada, cangas debaixo de intempéries.
Quem viveu em Cabo Verde – não, não basta simplesmente ter vivido em Cabo Verde, é preciso ser-se cabo-verdiano, não importa de onde tenha vindo – entenderá tão bem estas histórias dentro da história de Rose Nery:

“Séculos passados, eu não preciso de abrir nada, e de cor recito com todas as pausas de exigência “Os Pobrezinhos” do livro da Primeira Classe? “Minha mãe, é uma pobrezinha que veio bater à porta”. A mãe veio logo com um prato de sopa e deu ao mendigo”... E por aí adiante até ao final”

Não há aqui sentimentalismo lamecha, ocioso. Há uma realidade vivida, bem localizada entre as pessoas e lugares.

“Também sabia a “Visitai os enfermos” , na página dezoito, faz de conta, pois já não me lembro da paginação dos livros do Estado Novo, e como o prejuízo do fluir deste episódio, não o largo para , à pressa, uma investigação numa biblioteca lá para Benfica, onde manuseei uma daquelas avis rara.”
Em Rose Nery a cultura greco-latina-judaico-cristã-ocidental não desenraizou a menina oriunda das ribeiras de São Antão.
Essa é a menina que eu vejo sempre, aquela menina muito loirinha, sorridente, de olhos muito vivos, que conheci no meio de outros meninos e meninas de todas as cores em Cabo Verde.
Essa a Rose Nery que conheço e continuo sempre a ver. A Rose Nery que um dia escreveu um livro em que conta coisas como:
“...No lusco-fusco, os meninos, acocorados, apertavam-se uns contra os outros, chegada a hora dos contos de meter medo e de se arrepiar ao limite do pavor, tanto melhor. Também este importados, pois quando os navegadores no tempo antigo da monarquia portuguesa, acharam aquelas ilhas, não encontraram nelas nenhuma população autóctone para dizer nada da sua vida, e muito menos dar conta do seus medos A bem dizer, para ali, tudo de importação, sendo que o animal feroz, a centopeia, e vá-se lá a afirmar, que tamanhas bichas não tenham desembarcado do porão de algum navio, que por aquelas montanhas fabulosas de dimensão, não havia clima nem regojo para um animal próprio da humidade dos esgotos. Durante séculos, escoador inexistente por lá! Se fora de casa, meninos e graúdos se aliviavam da cachupa do meio-dia nos campos, uma pedra lisa, bem assoprada, servia para limpeza.”

Ah Cabo Verde, como tu, só tu!

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